Vidas negras no Brasil também importam

Policial aponta fuzil para manifestante desarmado, cercado e isolado em rua de bairro nobre do Rio. E se fosse na favela?

Nas últimas semanas, acompanhamos manifestações em todo o mundo contra o racismo, sobretudo nos Estados Unidos. Elas ocorreram após a morte do estadunidense George Floyd, homem negro que mesmo imobilizado pelos policiais teve seu pescoço brutalmente pressionado pelo joelho de um policial branco que se apoiara sobre ele. Seja nas redes sociais, nas ruas ou na grande mídia, as manifestações ganharam terreno em solo brasileiro, país que vivencia cotidianamente manifestações racistas de origens seculares.

Contudo, um aspecto pouco abordado chamou a atenção em meio às manifestações em nosso país. O fato gerador, bem como o conteúdo em torno do qual giram os debates, se atém à morte de George Floyd, que ocorreu no dia 25 de maio. Anteriormente, porém, aqui mesmo no Brasil, mais precisamente no morro do Salgueiro, em São Gonçalo, o garoto negro João Pedro Mattos, de apenas 14 anos, foi morto dentro de sua própria casa com um tiro de fuzil nas costas, exatamente uma semana antes de Floyd. Dois dias depois (20/05), mais um rapaz negro, João Victor Gomes da Rocha, de 18 anos, teve sua vida tirada durante operação policial realizada na Cidade de Deus. Incursão realizada enquanto moradores distribuíam cestas básicas. No dia seguinte, mais um negro, em mais uma favela, foi morto após ser alvejado por disparos feitos durante operação no Morro da Providência. Rodrigo Cerqueira, de 19 anos.

As mortes desses jovens negros, ainda que vez ou outra repudiadas, não suscitaram a mesma onda de manifestações antirracistas que ora acompanhamos em torno da morte do estadunidense George Floyd. Nem mesmo em nosso país. Este fato levanta alguns questionamentos acerca da visão que a sociedade brasileira tem de si mesma e de seu povo negro. Será que o complexo de vira-lata se sobrepõe a direitos fundamentais do ser humano a ponto de quase ignorarmos a violência cotidiana contra os nossos negros e nos levantarmos somente em prol do estadunidense? Será que a própria cotidianidade do assassinato de negros, especialmente nas favelas, tornou-se algo natural? Por que o aspecto abordado pela grande mídia brasileira acerca dessas mortes aborda quase que exclusivamente o despreparo (o que preferimos chamar de reflexo de uma sociedade violenta e racista) das operações policiais, deixando de lado o racismo estrutural que atribui à pele negra menor importância? Retratado com exatidão na abordagem feita por um policial militar ao apontar um fuzil para um jovem negro, desarmado, cercado e isolado, durante manifestação pelas ruas do bairro nobre de Laranjeiras, zona sul do Rio, no último dia 31 de maio. E que nos fazem pensar: a ação seria igual se fosse um homem branco? O que poderia ter acontecido se a cena ocorresse em uma favela?

O combate ao racismo, assim como a quaisquer outras formas de discriminação, é de fundamental relevância e deve ser uma luta permanente e de todos. Mas a prática sob nenhum aspecto deve descolar-se do discurso, sob o risco de reforçamos a estrutura sociocultural discriminatória.